Saía um, saía outro
Se você for à sua plataforma de música favorita, certamente encontrará um punhado de letras que falam sobre pessoas que saíram do campo para tentar a vida na cidade. Nos mais diferentes versos ficamos diante de um eu-lírico angustiado que encontra em você alguém disposto a ouvir sobre as descobertas de um assustador mundo novo.
Em Fotografia 3x4, por exemplo, Belchior canta:
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana
E lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
E de ver o verde da canaEm cada esquina que eu passava, um guarda me parava
Pedia os meus documentos e depois sorria
Examinando o três-por-quatro da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha
Mas se ao invés de emprestar nossos ouvidos ao eu-lírico que partiu, fossemos escutar as histórias daqueles que ficaram? De certa maneira, é isso o qu...Não, corta. É melhor deixar Thamara Pereira, jornalista, pesquisadora e diretora, falar sobre o documentário que produziu:
O documentário Tudo Que Movimenta (2014) discute o problema do êxodo rural a partir de histórias pessoais e relatos espontâneos de moradores do interior de Belisário — zona rural de Muriaé, em Minas Gerais — que falam sobre solidão, saudade e dificuldades que os jovens encontram em permanecer na zona rural.
“Nós abordamos o êxodo rural sem discutir o problema diretamente, mas mostrando as mudanças na ordem das famílias. Quando aqueles senhores bem velhinhos falam da casa vazia, do cotidiano solitário que eles preenchem com trabalho e com saudade, você percebe o reflexo dessa questão nas relações sociais. Essa cultura da ausência, o esvaziamento e envelhecimento da população desses locais. Os personagens falam de tudo isso de uma forma bem doce e verdadeira”.
O curta-metragem surgiu a partir do trabalho de conclusão de curso da diretora, na Universidade de Brasília (UnB). A produção foi uma das 20 selecionadas pelo Projeto Curtas Universitários, e estreou no Canal Futura, além de ter sido exibida em festivais de cinema pelo Brasil e em eventos no exterior.
O documentário faz um recorte do cotidiano solitário dos moradores de Belisário e retrata o êxodo rural por uma ótica inversa: a partir das mudanças na ordem das famílias do interior, ou seja, as mudanças na vida de quem fica, quando o outro vai embora.
Bora conferir o curta? Sério, aperta o play aí. A direção sensível nos brinda com entrevistados de brilho ímpar.
As lentes da autora, ao registrarem cenas em Belisário, distrito de Muriaé (MG), captam aspectos mais gerais presentes em outras realidades, como o êxodo rural, o envelhecimento e a masculinização da população do campo. Tais tópicos são tratados nos textos a seguir:
Êxodo Rural, Envelhecimento e Masculinização no Brasil: Panorama dos Últimos 50 Anos
Modo de vida camponês ainda resiste entre pequenos agricultores
Novo rural e o Censo Agropecuário
As questões acima nos levam a pensar em outras paisagens campesinas que reunem elementos que caracterizam o novo rural, expressão nascida de estudos que demonstram que a fotografia do rural não é exatamente aquela cristalizada em nossas imaginações. Vamos ver essa história aqui e aqui.
Ah, veja também a publicação “O novo rural Brasileiro” de José Graziano da Silva.
“O mundo rural é maior do que o agrícola”, constata Graziano. O novo rural incorporou atividades até então consideradas como hobbies ou pequenos empreendimentos, transformando-as em negócios rentáveis: multiplicam-se os “pesque-pague”, os sítios de lazer, as casas de campo, fruticultura, floricultura, além de uma série de serviços, como restaurantes, clubes, hotéis-fazenda, etc (Pesquisa FAPESP)
Para pensar nestas transformações do campo, o Censo Agropecuário tem importância central. O primeiro foi realizado em 1920 e captou “a transição da economia agrícola para a industrial”.
Acervo IBGE.
Já o último Censo Agropecuário foi realizado em 2017 e seus resultados podem ser conferidos aqui. Pela primeira vez, a cor ou raça dos produtores agrícolas foi abordada e o resultado salientou que “pretos ou pardos são minoria na direção de grandes estabelecimentos agrícolas”.
Outros conteúdos relacionados:
Mulheres ganham espaço na agropecuária, mas são apenas 19% dos produtores
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IBGE inclui recortes territoriais mesorregião e microrregião nos dados do Censo Agro 2017
Em 2020, o Censo Agropecuário completou 100 anos
Censo agropecuário: o que é, sua estrutura e para que serve:
Falando em IBGE, relembramos duas edições que destinamos ao Censo 2022:
Campo, cidade, agricultura urbana e mais
Há alguns estudos bem legais que falam da “importância das áreas rurais nas antigas pólis gregas do Mediterrâneo”. Sobre agricultura urbana chamamos atenção para estas duas reportagens:
Como no curta “Tudo que movimenta” visualizamos efeitos do êxodo no campo, selecionamos textos que voltam a atenção para a educação nesse processo:
Sobre mais questões vinculadas ao campo, especialmente à agricultura, lembramos de nossas duas primeiras edições: Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça e Da fome à fome
Cadência campesina
Já que no início dessa edição falamos de música, uma dica é conferir o podcast USP Especiais #62: Cadência campesina. Espia só a descrição do episódio:
Campo e cidade se entrelaçam há tantos séculos que várias criações artísticas tratam dessa relação. No Brasil, as canções revelam diversos ângulos das experiências do povo. E aqui, neste USP Especiais, é o campo que dá o tom. A dor da partida para o meio urbano, a saudade de casa, a esperança da volta, as metáforas políticas a partir dos personagens rurais, a resistência sertaneja contra a migração iminente e as idealizações urbanas que buscam, no campo, o resgate dos sonhos e das utopias.
Acompanhe esse programa com cheiro de mato e longos caminhos.
Gostou, né!? Então bora acompanhar aqui.
E com o Lamento Sertanejo de Dominguinhos e Gilberto Gil nos despedimos. Inté a próxima!
Obrigado por nos acompanhar até aqui. Se puder, nos ajude, por favor, a espalhar Notícias do Espaço : )
Agradecemos à jornalista e pesquisadora Thamara Pereira por aceitar o convite para falar a respeito do curta de sua autoria.
Créditos:
Pesquisa, curadoria, desenvolvimento e redação: Maria Phernanda da Silva Soares e Higor Mozart G. Santos
Texto sobre o documentário “Tudo que movimenta”: Thamara Pereira.
Coordenação: Higor Mozart G. Santos
Financiamento: Programa Institucional de Apoio à Extensão (PIAEX) do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (Edital 01/2022) | Projeto “Além dos Pares: a Pesquisa na Sala de Aula”.
Imagem do Astronauta: Freepik
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