Ouve o barulho do rio
São muitas as músicas que trazem imagens hídricas. Desde “Terra! Planeta Água”, de Guilherme Arantes, até “você desagua em mim, e eu, oceano” de Djavan; passando pelas “águas de março fechando o verão”, nas vozes de Elis & Tom.
São versos que vertem em abundância, “vem ondas, como um mar” (Lulu Santos). Ou em gotas, Mano Brown, afinal, inicia Jesus Chorou com esta charada: "O que é, o que é?/ Clara e salgada/Cabe em um olho/ E Pesa uma tonelada/ Tem sabor de mar/ Pode ser discreta/ Inquilina da dor/ Morada predileta" (Racionais). Noutra canção, o mesmo rapper denuncia um “cheiro horrível de esgoto no quintal” e prenuncia que “por cima ou por baixo, se chover será fatal” (Homem na Estrada). Talvez seja por isso que na música do Falamansa role um clamor endereçado às gotas que despencam do céu: “Oi, chuva! Eu peço que caia devagar/Só molhe esse povo de alegria” (Falamansa).
E não para por aqui: a voz Luiz Gonzaga, em Asa Branca, narra triste paisagem: “Por falta d'água perdi meu gado/Morreu de sede meu alazão”. Paulinho da Viola discorre sobre “rio que passou em [sua] vida”. Sá & Guarabyra bradam que “o sertão vai virar mar”. Já percebeu, né? Se deixar, a gente fica até amanhã1. Vamos, então, nos conter. De acordo com nosso roteiro agora é a hora de chamar atenção para uma composição de Marisa Monte, Seu Jorge, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes2:
Ouve o barulho do rio, meu filho
Deixa esse som te embalar
As folhas que caem no rio, meu filho
Terminam nas águas do mar
(O RIO)
E você? Você presta atenção nos cursos hídricos? Os políticos daí de onde você mora prestam…atenção?
Com o intuito de refletir sobre esse tema, que envolve as sociedades urbanas e as águas, convidamos Dr. Pedro José de Oliveira Machado. Ele é professor titular do Departamento de Geociências (UFJF) e possuiu ampla experiência nas áreas de gestão de recursos hídricos, urbanização e substituição de paisagens hídricas, dentre outras. Bora ler o que o professor tem a nos dizer:
Água e ambiente urbano
O modelo de urbanização experimentado pelos países periféricos, como é o caso do Brasil, tem se caracterizado, dentre outros aspectos, pela intensa ‘antropização’ das áreas naturais, com a criação de novas paisagens, geralmente divorciadas dos elementos físicos. Embora seja esse um fato característico de todos os lugares urbanos, os efeitos desse processo têm sido sentidos de maneira mais intensa nas médias e grandes cidades.
Dentre os elementos naturais impactados pela crescente urbanização, os cursos d’água têm sido os mais severamente alterados, passando, de maneira geral, da condição de principais vetores de ocupação a meros locais de destinação final dos efluentes produzidos pela população das cidades, ou sendo simplesmente retirados do nosso campo visual, substituídos por ruas e avenidas.
As relações entre urbanização e recursos hídricos vêm sendo marcadas, sobretudo, pelo insucesso, com prejuízos significativos para as águas urbanas e, assim, para toda coletividade. Grande parte dos problemas relacionados aos recursos hídricos tem como causas principais a sua má utilização, a falta de gestão e planejamento eficientes e a perda da ligação entre sociedade e natureza, uma das marcas mais significativas da passagem do homem da condição de predador para depredador.
Drew (1986, p.87) avalia esta relação, destacando o exemplo dado pelas chamadas ‘civilizações hidráulicas’, do antigo Egito, da China, da Índia e da Mesopotâmia, enfatizando que “sua ascensão e subsequente queda estão intimamente relacionadas ao uso e abuso da água”.
A cidade de São Paulo, do século XIX, por exemplo, é retratada como a “cidade das águas” (SANT’ANNA, 2007, p.24), uma situação impensada para descrever atualmente essa metrópole, cujos maiores problemas estão relacionados justamente à escassez desse essencial recurso. O mesmo vale para inúmeros outros centros urbanos.
Acomodar populações tão grandes em áreas tão pequenas implica em significativas alterações nos rios urbanos, seja pela degradação da qualidade de suas águas, seja pela substancial alteração da rede de drenagem.
Enquanto a qualidade das águas urbanas tem sido negativamente afetada sobretudo pela introdução de esgotos domésticos e/ou efluentes industriais sem prévio tratamento, a dinâmica dos canais urbanos tem sido alterada por intervenções diversas, que levam a importantes modificações na sua estrutura e comportamento.
Por essas e outras razões, o que se tem notado é que as cidades, de maneira geral, independentemente do seu tamanho, se mostram cada vez menos preparadas para conviver com eventos comuns e naturais, como as tempestades. As consequências têm sido cada vez mais graves e têm atingido um número cada vez maior de pessoas.Há muito tempo a cidade deu as costas para os cursos d’água. Os córregos correm escondidos, sob o asfalto ou nos fundos das casas e são sempre apontados como culpados pelo mau cheiro da estação seca e pelas cheias de verão. Precisamos repensar, o mais breve possível, essa relação das sociedades urbanas com suas águas.
Pedro José de Oliveira Machado (novembro/2022)
Referências:
DREW, David. Processos Interativos Homem-Meio Ambiente. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, 206p.
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. A cidade das águas: usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822/1901). 1 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007,318p
Agradecemos imensamente ao professor Pedro pelas valiosas contribuições e, inspirados por suas palavras, seguimos navegando nesse mesmo tema3.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal / Por cima ou por baixo, se chover será fatal
A partir do trecho de um Homem na Estrada, dos Racionais, destacamos reportagens que tem como tema central o saneamento básico:
Desigualdade no acesso ao saneamento entre negros e brancos é realidade no Brasil
Para especialista, falta de saneamento nas periferias é racismo ambiental
Dados da ONU mostram que metade da população mundial não tem acesso à água potável
Política de interesses impede universalização do saneamento básico
Novo Marco Legal do Saneamento não trata setores público e privado da mesma forma
São as águas de março fechando o verão
A partir dos versos da clássica parceria entre Elis & Tom, sublinhamos discussões sobre as águas de março e de meses outros:
Planejamento urbano é essencial para enfrentar grandes enchentes
Recorrência de catástrofes naturais no Brasil impõe reflexões sobre injustiça ambiental
No Episódio Turma da Enchente 2, do podcast 37 Graus, ouvimos questões sobre “uma rua que alaga todo ano. Numa cidade que não foi feita para a chuva”. Vale muuuuuito a pena conferir.
Sobre enchentes há também o podcast Tibungo que entrevistou a urbanista Luciana Travassos e trouxe discussões sobre “as dinâmicas das águas nas cidades”.
Indo em direção à capital mineira, vemos que, de acordo com o geógrafo Alessandro Borsagli, um terço dos rios de Belo Horizonte estão escondidos sob o concreto4.
Aliás, longeva é a negligência em em relação aos cursos d'água em BH.
Saindo da metrópole dos belos horizontes e rumando Sao Paulo chamamos atenção para documentário “Entre Rios”.
Caso queira, veja também:
No meio do caminho tinha um rio: projeto que destaca a presença da água em São Paulo.
Seguindo nessa localização, fica a dúvida: Quando nós vamos poder nadar nos rios de São Paulo? Isso é discutido no podcast Momento Cidade.
Indo para Viçosa (MG) lhe convidamos a conferir dois textos de Osvaldo Ferreira Valente (engenheiro florestal, professor aposentado da UFV e especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas), sobre as relações entre os rios e as cidades:
Nesse mesmo curso, vale a pena ler o texto “Cidades nascem abraçadas a seus rios, mas lhes viram as costas no crescimento, por Leonor Assad”.
“O homem chega, já desfaz a natureza / Tira a gente, põe represa”
Se falamos de águas, não podemos deixar de enaltecer a atuação do MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens. No site oficial, vemos que as lutas do Movimento estão estruturadas, principalmente, a partir dos seguintes eixos: Direitos Humanos, Energia, Barragem, Amazônia e Água. Sobre esse último elemento, destacamos o texto abaixo:
O MAB entende que a água é uma necessidade, um direito humano fundamental e que por tanto não pode ser mercantilizada ou se tornar uma commodities. O Brasil possuí a maior reserva de água doce do mundo, e ainda temos uma realidade favorável, onde 90% dos domicílios que estão ligados na rede de abastecimento de água estão sobre responsabilidade estatal, apenas 10% nas mãos do setor privado.
Essa realidade está inserida em um profundo ataque das empresas transnacionais, que pretendem transformar o direito do povo ao abastecimento público de água e coleta de esgoto em uma mercadoria, para possibilitar a extração de taxas de lucro extraordinárias, aplicando o mesmo modelo do setor elétrico brasileiro. Pretendem dividir o sistema de água e saneamento, que é feito por uma empresa em vários “negócios”, de várias empresas, que pode aumentar as tarifas de água em mais de 200%.
No campo, a situação também é dramática, a cada ano aumentam os conflitos e disputas pelo acesso a este bem, de um lado os camponeses que produzem 70% dos alimentos da população brasileira e do outro lado o agronegócio que exporta praticamente toda sua produção e consome 80% da água brasileira, secando nossos rios e aquíferos, utilizando da violência contra o povo por meio do poder de milícias, muros e cercas, legitimados pelas concessões de uso, dadas pelo Estado para garantir o lucro desse setor.
Lutamos contra a violência no campo e das violações dos direitos humanos pois acreditamos que as “águas são para a vida e não para a morte”. É necessário enfrentar e derrotar todos os processos e tentativas de privatização da água, e reverter os processos já privatizados, por isso afirmamos que “água e energia não são mercadorias” e sim para a soberania do povo brasileiro (MAB).
Vale conferir também:
Central do Brasil aborda os 31 anos do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
O que é segurança hídrica e quais as regiões mais ameaçadas no Brasil
Água dos igarapés onde Iara, a mãe d'água, é misteriosa canção
Colocamos nos fones de ouvido a música de Guilherme Arantes para falar do Água, sua linda, projeto que traz diversos materiais e informações sobre a água. Vale muito a pena conferir.
Fonte: Projeto Água, sua linda.
Seguindo por estes meandros, outra dica é o episódio do podcast Histórias de Ninar para Pequenos Cientistas que trata sobre caminho da água:
Água de beber / Bica no quintal / Sede de viver tudo
Outra dica é conferir a iniciativa Mapa da Água coordenada pela Organização Não Governamental (ONG) Repórter Brasil. Ao acessar o site dedicado ao projeto você pode consultar diferentes cidades ao redor do Brasil para verificar se água apresenta ou não substâncias impróprias ao consumo:
Fonte: Mapa da Água (Reprodução)
Para fechar, recomendamos o episódio Águas de Kalunga5, em que a poeta e atriz Eliza Lucinda, narra um texto escrito por Conceição Evaristo.
É pau, é pedra, é o fim dessa edição!
Obrigado por nos acompanhar até aqui. Se puder, nos ajude, por favor, a espalhar Notícias do Espaço : )
Créditos:
Pesquisa, curadoria, desenvolvimento e redação: Maria Phernanda da Silva Soares e Higor Mozart G. Santos
Texto “Água e ambiente urbano”: Pedro José de Oliveira Machado
Coordenação: Higor Mozart G. Santos
Financiamento: Programa Institucional de Apoio à Extensão (PIAEX) do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (Edital 01/2022) | Projeto “Além dos Pares: a Pesquisa na Sala de Aula”.
Imagem do Astronauta: Freepik
O que falar, por exemplo, de O Mar Serenou na voz de Clara Nunes?
Vale dizer que um trecho dessa letra apareceu na questão 61 da prova azul do primeiro dia do Enem de 2019, num contexto que destacava uma postura de idealização da natureza.
Caso queira, vale conferir também esses três episódios SciCast
Caso queira, confira também: Rios invisíveis da metrópole mineira: mapa das bacias hidrográficas de Belo Horizonte
“No episódio de abertura e que dá nome ao podcast, a escritora mineira Conceição Evaristo apresenta um texto que aborda poeticamente a preservação da memória, suas dores e prazeres. Nas palavras da autora, ‘Respeitamos as águas. Cultivamos as lágrimas. Somos herdeiras e herdeiros de quem sabe verter e enxugar com as próprias dores’. O texto surgiu a partir de uma percepção abrangente da exposição ‘O Rio dos Navegantes’, que narra a história do Rio de Janeiro enquanto paradigma portuário”. (Fonte: Museu do Rio).
Ao falar em paradigma portuário, lembramos do projeto de pesquisa BALNEOMAR, financiado pelo programa de cooperação internacional CAPES/COFECUB (2018-2021). O objetivo “é analisar na longa duração, a produção do espaço balneário nas cidades litorâneas francesas e brasileiras”. Para acessar o site do projeto só clicar aqui.