Viajar é preciso (ou Notícias das Gerais)
Na edição de hoje temos a honra de contar com o professor Rafael de Freitas e Souza do IF Sudeste MG (Campus Rio Pomba) que nos fala sobre sua tese batizada “Viajar é Preciso: A saga dos viajantes europeus em Minas Gerais no século XIX". Vamos à entrevista:
Olá, professor Rafael, muito obrigado por sua disponibilidade e atenção. Recentemente você realizou um feito inédito no âmbito do IF Sudeste MG: se tornou o primeiro docente a optar pela defesa de uma tese – e não pela apresentação do memorial – para alcançar o nível de professor titular. Além de lhe parabenizar, gostaríamos que comentasse um pouco sobre sua trajetória acadêmica.
Sou graduado em filosofia pela UFJF e em história pela UFOP. Fiz o mestrado na UFMG onde pesquisei sobre a Inconfidência Mineira sob a perspectiva da história da leitura. Alguns anos depois, defendi a tese de doutorado na USP sobre a história da Mina da Passagem de Mariana. Investiguei, especialmente, o cotidiano dos trabalhadores escravizados e livres (nacionais e estrangeiros) dessa mina; ou seja, as condições de trabalho, as doenças ocupacionais, os acidentes mais frequentes, a jornada, a religiosidade, dentre outros aspectos. Atualmente, desenvolvo pesquisas relacionadas à história social do trabalho.
Tomando como ponto de partida o título de sua tese, estamos ansiosos por saber: afinal de contas, por que, para viajantes europeus do século XIX, viajar era preciso? E, por quais motivos, parte dessas viagens tiveram como destino as terras mineiras? Quem eram os viajantes que vieram para Minas Gerais?
Quando discorremos sobre os viajantes europeus que desembarcaram no Brasil após a transferência da Corte portuguesa em 1808 é preciso distinguir dois tipos essenciais: os viajantes-naturalistas e os artistas-viajantes. Ambos tinham a necessidade de conhecer in-loco a riqueza natural dos trópicos (botânica, zoológica e mineral). Os primeiros dedicavam-se à coleta e catalogação de exemplares da fauna e da flora brasileira; os artistas, por sua vez, concebiam a viagem como oportunidade indispensável para colocar em prática suas habilidades. Alguns, inclusive, fizeram parte das expedições científicas como ilustradores dos espécimes coletados; mas, não deixaram de capturar cenas do cotidiano da sociedade brasileira, em especial da escravidão e dos hábitos dos povos indígenas. Os viajantes que vieram a Minas pertenciam a essas duas categorias e o interesse variou conforme a especialidade de cada um. Vieram, portanto, botânicos, zoólogos, geólogos, antropólogos, pintores, desenhistas, diplomatas e pastores, dentre outros. Por outro lado, tentei demonstrar que o interesse dos viajantes pelo Brasil e por Minas Gerais ia mais além. Eles podem ser classificados, como o fez Mary Louis Pratt, como os batedores avançados do capital; ou seja, suas obras transformaram-se em importantes fontes de informações para os investidores europeus justamente porque atestaram a enorme riqueza ainda disponível a ser explorada pelas potências industriais, sobretudo pela Inglaterra.
Quais foram os percursos metodológicos adotados para a realização desse trabalho?
Os principais percursos metodológicos adotados foram: selecionar dentre os viajantes que aportaram no Brasil aqueles que se deslocaram até Minas durante o século XIX. Em seguida, foi necessário ler os relatos de viagem deixados por eles para conhecer os diferentes pontos de vista e analisar suas opiniões. O próximo passo foi escolher apenas um deles, o desenhista alemão Johann Moritz Rugendas, e eleger um de seus desenhos para realizar uma análise crítico-descritiva. Optei, portanto, pelo mais conhecido deles relacionado à atividade extrativa do ouro, denominado Lavagem do minério de ouro, perto da montanha Itacolomi.
A partir de sua tese, verificamos que a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 contribuiu para aumentar o interesse de europeus pelas riquezas naturais do país. Você poderia falar um pouco mais sobre tal aspecto?
A história da transferência da Corte portuguesa para o Brasil geralmente destaca as medidas socioculturais e econômicas adotadas por D. João VI. Entretanto, sua política liberalizante abrangeu também a permissão para a entrada no Brasil de estrangeiros de diferentes nacionalidades. Ele não abriu apenas os portos às nações “amigas”; abriu também as porteiras e as portas do interior do Brasil ao olhar dos viajantes.
Professor Rafael, questões raciais aparecem retratadas nos relatos pesquisados? De que maneira?
Sim, a escravidão era um dos principais temas de interesse dos viajantes. Mas, não apenas deles, também do público leitor dos relatos de viagens. No século XIX havia grande interesse por esse tipo de produção literária que mostrava tanto o exotismo de nossa fauna e flora como do cotidiano dos escravizados. Por isso, os registros sobre a escravidão feitos por esses viajantes são numerosos e minuciosos. Basicamente tudo o que estava relacionado à escravidão e aos escravos foi registrado em texto e imagens: as diferentes nações africanas originárias, a capoeira, os castigos públicos, o interior do navio negreiro, o mercado de escravos da rua do Valongo no Rio de Janeiro, o trabalho na mineração, na agricultura e no interior das residências, o lundu, etc. Os viajantes não deixaram de expressar suas opiniões sobre a escravidão: ora ressaltando a violência no trato cotidiano, ora preconizando a abolição gradual, ora naturalizando-a.
Como sabemos, os relatos dos viajantes contribuíram significativamente para alimentar o imaginário dos europeus em relação ao Brasil. Nos documentos que você pesquisou há passagens incentivadoras da imigração para as terras mineiras?
Sim, os relatos e imagens produzidos pelos viajantes contribuíram muito para consolidar a imagem do Brasil no exterior como um país naturalmente rico e exótico e uma terra de oportunidades para novos investimentos em diferentes ramos da economia.
Se a gente pegar um livro didático de História não será incomum encontrar uma ilustração chamada "Lavagem do minério de ouro" que vemos abaixo.
“Lavagem do minério de ouro perto da montanha de Itacolomi”, Johann Moritz Rugendas, aquarela sobre papel, 30 x 26 cm, 1835.
Trata-se, como apontado em sua tese, de gravura realizada por Johann Moritz Rugendas, artista-viajante alemão que passou pelas bandas mineiras. Mas, afinal, prof. Rafael, o que essa imagem apresenta de singular? O que ela nos conta?
A imagem Lavagem do minério de ouro perto da montanha Itacolomi é, sem dúvida a mais conhecida de Rugendas. Sua importância encontra-se na riqueza de detalhes. Nela é possível observar muitos aspectos relevantes relacionados à atividade extrativa do ouro tal como ocorria em Minas na primeira metade do século XIX: a divisão sexual do trabalho, a predominância do elemento masculino, as ferramentas e utensílios de trabalho, a vigilância dos feitores, a ação antrópica sobre a natureza, as precárias condições de trabalho, dentre outros.
Para nossa próxima pergunta lhe convidamos a ler alguns versos do poema "Canto Mineral" de Drummond:
Minas Gerais
minerais
minas de Minas
demais,
de menos?
minas exploradas
no duplo, no múltiplo
sem-sentido,
minas esgotadas
a suor e ais,
minas de mil
e uma noites presas
do fisco, do fausto,
da farra; do fim
(Carlos Drummond de Andrade)
Em alguma medida, podemos estabelecer nexos entre o que Drummond narra e o que você investiga em seu trabalho?
Sim, podemos. A identidade de Minas está associada à riqueza mineral. Ouro e pedras preciosas despertaram a cobiça da Coroa portuguesa, dos bandeirantes e dos investidores europeus. Muito suor e sofrimento de indígenas e africanos escravizados e de homens livres pobres foram necessários para extrair essas riquezas de nosso subsolo desde os primeiros achamentos no final do século XVII.
Como você é professor, não poderíamos deixar de fazer essa pergunta: de que maneira sua pesquisa pode ser abordada em sala de aula? Qual a sua importância?
A pesquisa pode ser abordada em sala de aula de diferentes maneiras: primeiro, fornece uma visão mais abrangente do período joanino e sua política liberalizante; segundo, contribui para estimular o uso crítico de fontes iconográficas em sala de aula e a importância de analisá-las criticamente; terceiro; perceber que esses viajantes deixaram valiosas contribuições para o alargar nosso conhecimento sobre o cotidiano do Brasil no século XIX; quarto, reconhecer a inestimável importância cientistas como Saint-Hilaire, Spix e Martius, por exemplo, para a catalogação da flora e da fauna brasileira; quinto, contribui para melhor entender as engrenagens do imperialismo; sexto, adverte que precisamos relativizar as opiniões dos viajantes sobre nossa sociedade, pois estavam eivadas de uma visão eurocêntrica.
Professor Rafael, agradecemos imensamente sua atenção e gostaríamos de saber se há algo mais que gostaria de acrescentar.
Gostaria apenas de agradecer vossa atenção e interesse pelo modesto trabalho realizado.
Nós quem agradecemos, imensamente, pela atenção. Os elementos destacados em suas respostas realçam o relevo da pesquisa e nos deixam com vontade de alongar o papo. Muito obrigado por nos brindar com a entrevista e com este trabalho que apresenta valiosas contribuições.
Alguns outros trabalhos do prof. Rafael de Freitas e Souza:
Trabalho e Cotidiano e na Mineração Inglesa em Minas Gerais: A Mina da Passagem (1863-1927)
Representação contra o Diretor da Saint John d'el Rey Mining Company, Limited (Morro Velho) - 1861
Seguimos viagem. Até a próxima!
Créditos:
Entrevista concedida por Rafael de Freitas e Souza ao projeto Notícias do Espaço.
Pesquisa, desenvolvimento e redação: Gabriel Merigui e Higor Mozart
Coordenação: Higor Mozart
Financiamento: Programa Institucional de Apoio à Extensão (PIAEX) do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (Edital 02/2023)
Versão web: noticiasdoespaco.substack.com